Nova Odessa, 4 de abril de 2009. 14h28min.
Uma multidão se aglomerava em volta do palanque montado às pressas com aço e madeirit cobertos por uma lona plástica branca. Em cima dele dezenas de pessoas se apertavam tentando aparecer no evento que seria televisionado por uma emissora local, filiada a um grande conglomerado televisivo. No centro, pairava tranquilo a figura do prefeito da cidade, que claramente vira naquela homenagem uma oportunidade eleitoreira.
À frente do palco repousavam algumas dezenas de cadeiras separadas do resto da multidão por um cordão de isolamento, além de alguns poucos policiais. Sentado em uma dessas cadeiras estava o homenageado, Washington Lemos, um bombeiro de 27 anos de idade que dias atrás salvara duas meninas, uma de sete e outra de cinco anos, do afogamento certo após a casa delas ter sido inundada pela força de uma enchente nunca vista antes na região. Até aí, a atitude, apesar de nobre, era igual à de muitos outros bombeiros que arriscaram suas vidas ajudando as pessoas afetadas pela enchente, o que fez com que sua história sobrepujasse as outras foi o fato do resgate ter sido filmado pelo celular de um vizinho, trazendo ao público imagens chocantes em que Washington atravessava a correnteza com uma garota em cada braço, ficando inúmeras vezes submerso sem que nunca deixasse qualquer uma das duas afundar.
O vídeo invadiu os noticiários e as páginas das revistas, tornando o rapaz conhecido por todo país. A internet também serviu de ferramenta para proliferação do caso, e, em poucos dias, Washington havia se tornado uma celebridade instantânea. Programas de televisão entrevistaram-no, homenagearam-no, mostrando-o como exemplo de conduta e dedicação. Agora, chegara a vez da sua cidade natal prestar sua homenagem: receberia as chaves da cidade tornando-se um Grã-Cidadão Nova Odessense.
Antes que as chaves lhe fossem entregues, vários discursos foram proferidos por amigos e colegas de trabalho, que versavam sobre a honra e o orgulho de conviver com um homem tão correto e prestativo. Outros contaram estórias divertidas sobre o bombeiro-herói, dando um leve tom de informalidade à cerimônia. Tudo isso envolto por uma capa de autoprojeção criada pelos eloquentes discursos políticos cuspidos pelo prefeito da cidade.
Houve também o imprescindível toque emocional que se iniciou quando os organizadores trouxeram ao palco a esposa do bombeiro, que relatou, acanhadamente, o orgulho em dividir com Washington todos os momentos de sua vida. Depois, veio o Grand-Finale, com as duas envergonhadas meninas, usando lindos vestidinhos de renda, percorrendo o palanque com a enorme chave em mãos e entregando-a ao bombeiro, sem entenderem direito o significado de tudo aquilo. Sem dúvida alguma, esse momento foi a grande cereja do bolo cerimonial.
Após a cerimônia, a população passou a curtir um show com núsicos locais, enquanto Washington e a esposa foram receber algumas outras homenagens paralelas e responder algumas perguntas da imprensa. Só ao final da tarde, com o sol se pondo no horizonte, é que o casal pode retornar para casa. Lucineide parecia aflita para ir embora e suspirou em alívio quando entraram no fusquinha 69 do marido. Enfim, voltariam para casa.
Nova Odessa, 4 de abril de 2009. 18h44min.
Assim que desceram do carro, o rapaz foi cumprimentado por mais alguns vizinhos. Tinha realmente ficado famoso, pois acabara de mudar para a cidade e não conhecia praticamente ninguém. Agora era uma verdadeira celebridade. A esposa já não estava mais tão sorridente, talvez pelo cansaço, talvez por não gostar daquela nova realidade a que era submetida.
Assim que entraram na modesta casa de laje sem reboco, Lucineide mal conseguiu esperar o marido fechar a porta:
Uma multidão se aglomerava em volta do palanque montado às pressas com aço e madeirit cobertos por uma lona plástica branca. Em cima dele dezenas de pessoas se apertavam tentando aparecer no evento que seria televisionado por uma emissora local, filiada a um grande conglomerado televisivo. No centro, pairava tranquilo a figura do prefeito da cidade, que claramente vira naquela homenagem uma oportunidade eleitoreira.
À frente do palco repousavam algumas dezenas de cadeiras separadas do resto da multidão por um cordão de isolamento, além de alguns poucos policiais. Sentado em uma dessas cadeiras estava o homenageado, Washington Lemos, um bombeiro de 27 anos de idade que dias atrás salvara duas meninas, uma de sete e outra de cinco anos, do afogamento certo após a casa delas ter sido inundada pela força de uma enchente nunca vista antes na região. Até aí, a atitude, apesar de nobre, era igual à de muitos outros bombeiros que arriscaram suas vidas ajudando as pessoas afetadas pela enchente, o que fez com que sua história sobrepujasse as outras foi o fato do resgate ter sido filmado pelo celular de um vizinho, trazendo ao público imagens chocantes em que Washington atravessava a correnteza com uma garota em cada braço, ficando inúmeras vezes submerso sem que nunca deixasse qualquer uma das duas afundar.
O vídeo invadiu os noticiários e as páginas das revistas, tornando o rapaz conhecido por todo país. A internet também serviu de ferramenta para proliferação do caso, e, em poucos dias, Washington havia se tornado uma celebridade instantânea. Programas de televisão entrevistaram-no, homenagearam-no, mostrando-o como exemplo de conduta e dedicação. Agora, chegara a vez da sua cidade natal prestar sua homenagem: receberia as chaves da cidade tornando-se um Grã-Cidadão Nova Odessense.
Antes que as chaves lhe fossem entregues, vários discursos foram proferidos por amigos e colegas de trabalho, que versavam sobre a honra e o orgulho de conviver com um homem tão correto e prestativo. Outros contaram estórias divertidas sobre o bombeiro-herói, dando um leve tom de informalidade à cerimônia. Tudo isso envolto por uma capa de autoprojeção criada pelos eloquentes discursos políticos cuspidos pelo prefeito da cidade.
Houve também o imprescindível toque emocional que se iniciou quando os organizadores trouxeram ao palco a esposa do bombeiro, que relatou, acanhadamente, o orgulho em dividir com Washington todos os momentos de sua vida. Depois, veio o Grand-Finale, com as duas envergonhadas meninas, usando lindos vestidinhos de renda, percorrendo o palanque com a enorme chave em mãos e entregando-a ao bombeiro, sem entenderem direito o significado de tudo aquilo. Sem dúvida alguma, esse momento foi a grande cereja do bolo cerimonial.
Após a cerimônia, a população passou a curtir um show com núsicos locais, enquanto Washington e a esposa foram receber algumas outras homenagens paralelas e responder algumas perguntas da imprensa. Só ao final da tarde, com o sol se pondo no horizonte, é que o casal pode retornar para casa. Lucineide parecia aflita para ir embora e suspirou em alívio quando entraram no fusquinha 69 do marido. Enfim, voltariam para casa.
Nova Odessa, 4 de abril de 2009. 18h44min.
Assim que desceram do carro, o rapaz foi cumprimentado por mais alguns vizinhos. Tinha realmente ficado famoso, pois acabara de mudar para a cidade e não conhecia praticamente ninguém. Agora era uma verdadeira celebridade. A esposa já não estava mais tão sorridente, talvez pelo cansaço, talvez por não gostar daquela nova realidade a que era submetida.
Assim que entraram na modesta casa de laje sem reboco, Lucineide mal conseguiu esperar o marido fechar a porta:
- Por favor, Washington, me dá a chave. - disse com rosto invadido por um súbito desespero.
- Calma, mulher. Fique tranquila. Daqui a pouco eu dou. Antes quero dar uma trepada gostosa. - o sorriso safado no rosto veio após uma leve piscadela em direção à esposa.
- Não! Não foi isso que combinamos! O acertado é que eu marcaria presença na sua cerimônia e assim que chegássemos em casa, você me daria a chave. - retrucou Lucilene indignada.
- E cumprirei minha palavra mulher, mas não antes de poder saciar minhas vontades. Sou homem, porra! Depois você reclama se eu pegar uma qualquer na rua. Onde já se viu isso? Vira envangélica e depois fica regulando essa mixaria, aí! Não se esqueça que agora que estou famoso, vai tá assim de mulher atrás de mim, ok? - disse ele, abrindo e fechando os dedos das mãos sinalizando a quantidade.
Então Lucilene resolveu ceder. Era melhor assim, afinal o marido era teimoso que só ele. Mais alguns minutos e estaria com a chave na mão. Não sentia mais prazer ao manter relações sexuais com ele, e apenas o fazia por puro medo. Washington não era essa flor que todo mundo parecia querer cheirar ultimamente, pelo contrário, era um homem maquiavélico e sádico, que a submetia aos mais variados tipos de torturas físicas e psicológicas sempre seguidas por ameaças de morte, caso o denunciasse. Até durante o ato sexual ele gostava de humilhá-la, fazendo-a colocar um travesseiro no rosto para que ele não tivesse que olhar para aquela "cara perebenta", como ele adorava dizer.
Para sua sorte, o marido sofria com um grave caso de ejaculação precoce, o que fazia o martírio muito mais suportável. Ao fim do "estupro consentido", como ela gostava de chamar, Lucilene pegou a chave e foi até uma pequena porta que ficava no chão da cozinha. Abriu-a e desceu os cinco degraus da improvisada escada de madeira. O local era uma espécie de porão, infestado pelo cheiro pútrido de fezes e urina. Não havia luz artificial no local, por isso a mulher teve que ascender um isqueiro para se locomover. Ao fundo, bem à sua direita, podia-se ver uma pequena jaula recheada por barras de ferro enferrujadas. Dentro da caixa, um menino, de mais ou menos onze anos de idade, deitava em posição fetal, chupando o dedo com tanta força, que o havia deixado em carne viva.
O garoto primeiramente assustou-se com a presença do vulto, recuando as costas até a parte de trás da jaula, porém, assim que reconheceu a mãe, começou a urrar alguns gemidos que misturavam alegria e sofrimento. A mãe abriu a porta da jaula, dando-lhe um forte abraço, enquanto o garoto, cada vez mais alto, gemia completamente entregue aos braços da mãe. Lucilene, ao perceber que os gemidos do filho aumentavam de volume cada vez mais, tentou acalmá-lo, mas, mesmo assim, não conseguiu impedir que o barulho irritasse o marido:
- Manda esse retardado calar a boca, Lucilene! - disse Washington enfiando a cara pela portilha no chão da cozinha.
- Já te falei que ele não é retardado, é autista. - a mulher respondeu rispidamente.
- Autista, retardado, mongolóide, é tudo a mesma merda! Manda ele calar a boca ou eu vou calar pra ele! - ameaçou, irritado, o homem.
Só que o garoto reconhecia e temia aquela voz grave. Quanto mais o padrasto falava, mais alto ele gemia. A mãe tentava de tudo para acalmá-lo, pois tinha consciência das possíveis conseqüências, mas o medo do menino era incontrolável. Quando Washington finalmente perdeu a paciência, desceu as escadas com um pedaço de pau na mão. Ameaçava partir no meio a cabeça do moleque, mas a mãe bravamente protegia o filho. À cada estocada, a dor de Lucilene era sobrepujada pelo alívio de ter evitado que o filho deficiente fosse agredido. Foram tantas pancadas que a mulher, certa hora, despencou no chão sem forças. O marido, então, jogou ambos dentro da jaula.
- Um dia eu vou te denunciar, seu filho da puta! - disse ela, enquanto ele subia as escadas.
- E quem vai acreditar nas palavras de uma evangélica alcoólatra, quando do outro lado quem fala é um grande herói nacional. - respondeu ironicamente.
- Não preciso de palavras. Eles vão acreditar nisso! - afirmou, levantando a blusa e mostrando a marca dos ferimentos.
- Pode ser, minha querida, mas não hoje. Não hoje. - finalizou o rapaz com desdém, fechando a portilha e deixando mãe e filho trancafiados em meio à total escuridão.
Nova Odessa, 5 de abril de 2009. 07h42min.
Washington saiu de casa atrasado, vestido com o uniforme de bombeiro. Seu fusca o esperava banhado pelo sereno matinal, limpo como uma carruagem real. O bombeiro surpreendeu-se quando foi abordado por inúmeras crianças pedindo autógrafo. Era novo no bairro e na cidade, e já era visto como exemplo. Depois da noite anterior e das ameaças da esposa, sabia que teria que se mudar dali em breve, entretanto, antes disso, aproveitaria aquela situação o máximo possível.
Enquanto tinha dificuldades para entrar no carro, completamente cercado pelas crianças, um senhor de aparentemente 60 anos, varria a calçada em frente ao portão de sua casa. Podia-se ver ainda, em alguns cantos, a sujeira que era resquício da enchente que fizera famoso o vizinho bombeiro. Parou o serviço por alguns segundos, fitando o herói cercado pelos pequenos fãs. Teve a concentração cortada por uma vizinha de corpo exuberante que se aproximou, fazendo uma pergunta:
- Esse é o tão aclamado herói de Nova Odessa?
- Sim senhora, minha jovem. Em carne e osso.
- Mais carne do que osso. E que carne suculenta, diga-se de passagem. - completou a mulher esquecendo-se por um segundo de que estava ao lado do velho.
- Sobre isso não posso opinar, minha jovem. - respondeu o velho rindo bem-humorado - só posso dizer que é um orgulho ter um cidadão desse morando em nossa humilde vizinhança.
- Eu que o diga, velho. Eu que o diga. - retrucou, soltando uma piscadela mal intencionada.
Ananias captou suas intenções na hora. Estava velho, mas ainda percebia quando uma mulher queimava em desejo por dentro. Sentiu uma certa inveja do grande herói, afinal aquela morena era um pedaço de mau caminho, mas sabia que estava velho demais para encarar um fogo no rabo daquele. Apenas suspirou e jogou, intencionalmente, um balde de água fria no tesão de Zuleica:
- Uma pena que ele seja casado. E fiel, além de tudo.
Zuleica entendeu o recado na hora. Seduzia homens com imensa facilidade, porém seus poderes eram obsoletos naqueles poucos que continuavam adeptos ao conceito da monogamia. Virou-se e voltou pra casa assim que o fusca conseguiu se desvencilhar das crianças do bairro.
- Mulher de sorte essa esposa dele. Mulher de muita sorte. - resmungou em inveja antes de sair.
2 comentários:
Amigo, já era sua fã desde São Paulo,ainda mais agora depois desse conto emocionante. Sei de tantas histórias assim e você tão brilhantemente soube contar.
Já leu o meu conto? Quero sua opinião.
Beijos naquele garotinho lindo, e uma Feliz Páscoa para vc e sua família.
Abraços,
Diana (Curitiba)
Ricardo é o cara! Muito bom o conto. Aguardo o próximo livro.
Abraço,
Julio Rocha
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