quinta-feira, 12 de março de 2009

Tarde Demais


Hélio passava mais um daqueles finais de tarde agradáveis. Um happy hour com seus companheiros procuradores regado à cerveja, futebol e discussões sobre os casos em que atuavam em defesa do estado. A conversa tomou um rumo mais sério quando Hélio expôs aos colegas algumas ameaças anônimas que vinha sofrendo nas últimas semanas. Elas eram assustadoramente reais, especialmente quando a voz aterrorizante relatava, com detalhes, a intimidade da família. Tinha conhecimento das aulas de balé da filha, das aulas de teatro da esposa, da escolinha de futebol frequentada pelo filho. Sabia, inclusive, horários e itinerários das pessoas da sua casa. Sentia-se intimidado por tudo isso, mas não podia demonstrar, afinal de contas, todos sabiam, mais de 90% das ameaças eram apenas palavras jogadas ao vento.


Continuaram a conversa por mais alguns minutos até o momento em que seu celular tocou. Levantou-se para fugir do burburinho que o impedia de entender com clareza o que lhe era falado do outro lado da linha. Os amigos perceberam a súbita mudança de semblante que veio acompanhada pela palidez do rosto sempre bronzeado pelo sol. Com certeza eram más notícias. Tiveram a comprovação disso quando viram Hélio bater em disparada em direção ao carro, providencialmente, estacionado à frente do bar. Enquanto corria puderam ouví-lo cuspir algumas palavras em meio ao desespero - "Meu Deus...minha mulher..." foi o que conseguiram captar.


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O nariz escorria uma gosma líquida e branca que mudava sua tonalidade ao juntar-se ao sangue que caía da boca. Aquele era o terceiro tapa que a mulher levava na cara daquele estranho e assustador homem à sua frente, e seu rosto já revelava marcas profundas o suficiente para levar semanas até desaparecerem por completo. A violência era tamanha que a fazia acreditar em qualquer ameaça que fosse expurgada por aquela fétida boca. A dor já incomodava, e somada ao hálito proveniente daqueles dentes negros e podres, transformava essa experiência em algo que beirava o insuportável.


Estava sentada em uma cadeira de madeira com as mãos amarradas para trás. Os pulsos estavam envoltos por várias voltas de uma linha fina, branca, igual às utilizadas pelas crianças ao empinarem suas pipas, mergulhada por inteiro em cerol - uma mistura de cola com vidro moído que torna a linha extremamente afiada - o que impedia que a mulher forçasse os braços na tentativa de estourar a linha, mas não evitava os pequenos cortes banhados de sangue em seus pulsos.


Alguns minutos se passaram sem que fosse novamente atormentada. O homem de voz grave e imperial e uma força descomunal - ao menos para ela - havia se retirado do quarto em que ela estava amarrada, há alguns minutos e o silêncio do cômodo era quebrado apenas pelo arquejar inadvertido causado pela dor dos ferimentos. Talvez ele tivesse ido embora. Talvez aquilo tudo fosse somente um susto, nada mais. Ainda não entendia o que aquela pessoa queria, sabia apenas que tinha sido obrigada a dar aquele telefonema.


Suas esperanças de que seu torturador tivesse deixado o apartamento esvaiu-se com o ranger produzido pela porta do quarto ao ser aberta. Na cara do malfeitor um sorriso estranho, diferente...e um tanto sádico.


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Depois de fazer algumas conversões proibidas no intuito de fugir do trânsito e ultrapassar alguns cruzamentos protegidos por faróis vermelhos alimentado pela pressa, Hélio decidira parar o carro em um canto qualquer e seguir a pé. Seu destino não era longe, mas alcançá-lo a tempo de evitar o pior tornava a jornada árdua e extenuante. A gravata já com o nó da gola amolecido bailava contra o corpo do procurador seguindo o ritmo imposto pelo vento e pela pressa do homem que já suava compulsivamente pela testa. O tempo agora era seu inimigo, e a pressa, neste exato momento, era a melhor amiga da perfeição.


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A mulher despertou ofegante com o banho de água que acabara de sofrer. Havia desmaiado durante a última sessão de pequenas torturas - ainda não sabia qual era pior, se a tortura física ou a psicológica - o que fizera com que aquele miserável enchesse um balde com água gelada e encharcasse seu corpo com o líquido frígido. O frio que sentia era tamanho que a trêmula mulher, que tinha agora a pele toda enrugada, nem sentia o queimar intenso causado pelos ferimentos assim que estes eram tocados pela água esparramada.


- O QUE VC Q..QU..QUER CO..CO..COMI...MI..GO? - perguntou a mulher batendo os dentes uns contra os outros como uma caveira falante.


- Com você? nada! - respondeu o homem com escárnio - apenas me divertir um pouquinho, enquanto tenho que esperar... - finalizou misteriosamente.


- Es...pe..pe..rar o que..que? P..P..POR FA...FAVOR, AO ME..ME..NOS ME DIGA O QUE ES..TA..TÁ ACONTECE...CENDO! Eu p...preciso sa... - antes mesmo que pudesse terminar o raciocínio a mulher novamente apagou, o que comprovava que para ela, a pior tortura estava sendo mesmo a psicológica, já que, dessa vez, o homem nem a havia tocado ainda.


Ele, então, abriu um novo sorriso, diferente do primeiro, um pouco mais revelador. Aquela era a cara produzida por alguém que acabara de ter, o que julgara ser, uma boa idéia. Sim. Ele tinha tido uma ótima idéia. Para ele, pelo menos. Olhando o corpo desfalecido e desprotegido daquela singela dona-de-casa, pensou em como lhe causara sofrimento desde que chegara àquele local, então nada mais justo que, agora, a fizesse extasiar de prazer.


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Hélio corria, corria, corria. Cada vez mais depressa. "Estou chegando, meu amor" pensava ele. Logo, logo estaria lá. Como podia ter deixado esta situação se desenrolar. Ela não o perdoaria nunca. Mas já estava perto. Muito perto. Só esperava que não fosse tarde demais.


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A mulher que anteriormente havia voltado a si com um banho de água fria, dessa vez recobrava os sentidos com outro banho, só que este diferente e mais repulsivo, recheado de saliva. Sua boca era invadida pela língua grossa e áspera do rapaz, e seu hálito era tão atordoante que, não fosse o nojo que sentia, teria desmaiado novamente. Sentiu um embrulho no estômago e torceu para que vomitasse na boca daquele infeliz, mas o enjôo passou depressa. Só aí percebeu que sua mão direita agora estava presa em outro lugar: dentro das calças dele. Enquanto estava "fora-de-área" o miserável desamarrou sua mão direita - a esquerda permanecia amarrada pela linha com cerol ao pé da cadeira - e a colocou em seu pênis já inflado pela ereção. Tentou tirar a mão, mas foi atingida por um soco forte o suficiente para abrir contagem a qualquer pugilista profissional. Ficou meio inebriada com a agressão facilitando uma nova introdução daquela língua asquerosa em sua boca.


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"arf...arf...es...tou...che...gando...arf...arf...meu...am...or...arf...arf!"


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O homem genuflexo gritava de dor enquanto levava as mãos à boca. o sangue vazava por entre os dedos revelando a gravidade do ferimento. A mulher o encarava com os olhos arregalados, invadida por uma insanidade animal e irracional. Na boca, a língua do agressor arrancada a dentadas. Dessa vez, o sangue que inundava seu rosto não era seu, e sim daquele desgraçado que, agora, chorava feito uma criança perdida da mãe. Levantou-se da cadeira, ainda com a mão esquerda presa o pé, acertando um joelhada no rosto do homem que caiu de costas acusando o golpe. Arrastou a cadeira por alguns metros em direção ao criado-mudo repousado ao lado da cama. O pulso esquerdo foi rasgado ainda mais pela linha cortante, mas el tinha chegado a um ponto em que a dor não era mais empecilho para nada. A tesoura que se encontrava dentro da gaveta aberta cortou a linha com uma facilidade invejável, mas ainda teria um outro trabalhinho.


A mulher caminhou tranquilamente em direção ao ex-torturador, agora não mais que um bebê chorão, e ao vê-lo soluçar em desespero, pensou em como ela resistira ao sofrimento de uma forma mais honrosa. Teve vergonha por ele. Na sua opinião, o pré-requisito básico para alguém se tornar um torturador deveria ser sua resistência pessoal à dor. Pelo visto, não era. Chegou ao lado do homem ajoelhando-se com o corpo dele entre suas côxas. Não hesitou, apenas levantou sua mão direita - a mesma que ele escolhera para satisfazer seus desejos sórdidos - e enterrou a tesoura em seu pescoço.


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Hélio passou como uma locomotiva pela portaria da entrada seguindo imediatamente em direção à escada. Ela era acarpetada e circular o que tornava a subida mais cansativa e mais demorada do que gostaria. Ao terminar de subir todos os lances, apoiou-se na parede buscando forças para engolir o coração que já quase lhe fugia pela boca. Com as mãos agora em cima dos joelhos, olhou para frente e observou duas crianças em pé, apoiadas em uma pequena mureta de madeira. O barulho de sua chegada fez com que o menino olhasse para trás, vendo o pai ofegante comas mãos nos joelhos, e a camisa ensopada pelo suor. O cabelo também estava esvoaçado o que lhe causava estranheza já que seu pai sempre usara gel.


- Papai, corre! Corre que está acabando! - gritou o garoto alertando Hélio.


Hélio caminhou vagarosamente até a mureta que abrigava o mezanino, e só então percebeu o teatro lá embaixo completamente lotado. No palco, a esposa, abraçada a um homem com uma tesoura de plástico pendurada ao pescoço, agradecia o público que os ovacionava em pé. A luz do teatro acendeu-se com a entrada do resto do elenco, que ,agora junto aos dois protagonistas, também faziam reverências à platéia enlouquecida. Foi quando Hélio observou a esposa lá de baixo encarando fixamente o mezanino do teatro. O homem acenou para esposa - que retribuiu animadamente o gesto - dando graças a DEUS por ter chegado a tempo. Ainda demoraria para ela deixar o camarim, o que dava tempo de pedir aos filhos, além de segredo pelo atraso, um resumo detalhado sobre a peça que acabara de ocorrer. Então, franziu a testa ao lembrar que teria de lhe contar sobre as ameaças que vinha sofrendo. Mas não hoje. Não hoje.

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